Não vou dar uma de espião!

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Sobre um certo jogo de aparências que não funcionou…

Estamos começando a descobrir o lado negro da história de alguns cidadãos da República do Uruguai que colaboraram com o serviço de inteligência comunista tchecoslovaco da StB na época em que ele atuava ofensivamente em seu país (1961 – 1977).

Pouco a pouco publicaremos as histórias de cada pessoa que colaborou com os espiões de Praga, mas antes disso, vale a pena descrever ao menos uma história com um final diferente: quando um certo uruguaio “trabalhado” pelos diplomatas tchecoslovacos (os espiões de Praga em Montevidéu trabalhavam sob cobertura diplomática)  percebeu a tempo o que se escondia por trás da fingida amizade e disse não à tentadora proposta de trabalho para alguém que vinha do lado de lá da cortina de ferro. Na verdade, ocorreram mais casos fracassados (do ponto de vista da StB) como esse do que aqueles que terminaram com sucesso. Vale a pena descrever também estes casos, pois eles demonstram que os relatórios enviados do exterior para a central do serviço de inteligência em Praga eram verdadeiros; que os funcionários da inteligência tchecoslovacos que trabalhavam no exterior eram objetivos e não falsificavam a realidade. Quando as suas ações falhavam, também escreviam a verdade sobre isso em seus relatórios.

Ao estudar os documentos do Arquivo dos Serviços de Segurança de Praga (ABS – https://www.abscr.cz/jmenne-evidence/ ) encontramos muitas informações diferentes e diversas histórias. É preciso esclarecer que existem muitos documentos no ABS, que possuem a palavra “Uruguai”; isso resulta do fato de que o serviço de inteligência da StB operou nesse país por um período relativamente longo, então, apesar de ser um país de pequenas dimensões e, podia-se pensar, também de uma importância menor (do que por exemplo o Brasil ou Argentina) para operações de inteligência, foi reunida uma quantidade relativamente alta de documentos. Encontramos no arquivo diferentes pastas de objetos, ou seja, que descrevem objetos de interesse, como o parlamento, ambiente jornalístico, polícia, etc. várias pastas de correspondência operacional (são pastas com cartas, instruções, informes e relatórios procedentes da rezidentura do serviço de inteligência em Montevidéu para Praga e vice-versa) assim como pastas sobre rede de agentes, ou seja, que descrevem os diferentes colaboradores secretos e agentes recrutados pela StB no Uruguai.  Devemos esclarecer que na terminologia de serviços de inteligência usada nos países comunistas, o termo agente tinha um significado pejorativo e era aplicado somente para colaboradores secretos recrutados (que trabalharam em prol do serviço de inteligência comunista por motivos ideológicos, financeiros ou ainda como resultado de chantagem). A CIA ou outros serviços de inteligência ocidentais aplicavam essa palavra para os oficiais da inteligência enquanto que os serviços do Leste usavam para os seus oficiais o termo funcionário ou oficial de carreira e, no que diz respeito a concretas situações, quando determinado oficial trabalhava com um agente concreto, então o dito oficial era para esse colaborador o seu Oficial Condutor (nesse caso o Ocidente usava o termo controlador). A base era a rezidentura (palavra que vem da língua russa) que geralmente estava localizada na embaixada; os americanos usam o termo estação.

O tema Uruguai é extenso nos acervos de Praga e, na verdade, uma descrição objetiva exige um formato mais amplo: o melhor seria um livro.

Prédio das Nações Unidas em Nova York.

Antes que um trabalho como esse possa surgir, tentemos nos aproximar de alguns aspectos do trabalho da StB em Montevidéu. Os oficiais do serviço de inteligência que trabalhavam sob uma cobertura diplomática (na realidade, cumpriam parcialmente suas funções diplomáticas) tinham como objetivo adquirir informações nos países onde atuavam assim como influenciar sobre alguns acontecimentos (aqui se trata de um papel de exercer influência). Para poder realizar estas tarefas, precisavam de colaboradores, de preferência entre a população local. Além disso, no Uruguai também operavam sob o controle da central e da rezidentura, agentes tchecoslovacos que eram chamados de colaboradores ideológicos (abreviação em tcheco: IS) – geralmente eram membros do Partido Comunista da Tchecoslováquia, que antes de viajarem ao exterior eram chamados até o Ministério do Interior e lá persuadidos a colaboração com a StB por motivos ideológicos – patrióticos. A recusa em colaborar poderia significar a proibição em partir para o posto no exterior, então, geralmente todos concordavam; porém, os seus valores para o trabalho de inteligência eram distintos: as vezes nenhum, as vezes muitos. Não possuíam principalmente as possibilidades dos cidadãos do país, pessoas que ocupavam funções importantes e interessantes do ponto de vista de trabalho de inteligência assim como jornalistas, políticos, economistas, etc…mas isso não significa que os colaboradores ideológicos eram inúteis – começavam a conhecer as pessoas no país onde atuavam e muitos deles funcionavam muito bem no papel dos, assim chamados, “apontadores”, ou seja, aqueles  que forneciam para o serviço de inteligência os nomes de pessoas, que na opinião deles, poderiam ser interessantes para a StB. É disso que se trata no caso que descreveremos aqui. Os colaboradores ideológicos no exterior também eram controlados pelos oficiais do serviço de inteligência.

Voltemos aos funcionários da StB.  Para encontrar e adquirir um colaborador secreto local, o oficial da inteligência tinha que conhecer muitas pessoas em determinados ambientes. Esses conhecidos (contatos), após uma seleção sob o ponto de vista de utilidade, eram depois de um certo tempo limitados para uma quantidade menor de pessoas as quais o oficial devia continuar a “trabalhar”, ou seja, conhecer, estudar as suas características e possibilidades e, principalmente, afeiçoa-las a si mesmo, ou seja, criar uma relação bem mais íntima, como uma amizade. Estas pessoas as quais o oficial da StB ia conhecendo, eram chamadas durante um certo tempo de figurantes trabalhados (em tcheco: “tipos”) e já recebiam codinomes nos relatórios. O oficial devia saber tudo sobre essas pessoas; principalmente onde trabalha, a que tipo de informações tinha acesso, quanto ganhavam, quais eram suas convicções, conhecer a sua biografia, orientar-se quanto as suas relações familiares, como passava as horas livres, que hobby tinha, quais eram seus pontos fracos, seu círculo de relações. Tudo isso influenciava sobre a avaliação da utilidade desta pessoa para o serviço de inteligência e sobre as possibilidades de adquiri-la para a colaboração – caso o figurante ganhasse pouco, isso significava que existia a possibilidade de tentá-lo com dinheiro; caso possuísse convicções esquerdistas, isso seria um ponto de ligação para a colaboração em base a ideologia, caso o seu trabalho não fosse reconhecido em seu emprego, então seria possível lhe dar mais valor por aquilo que poderia fazer em prol do progresso e paz mundial, caso fosse mulherengo, seria possível apresentar-lhe uma mulher atraente e comprometê-lo, etc…O oficial sempre informava a central da inteligência em Praga sobre todos os seus encontros com os figurantes e suas avaliações sobre eles; lá essas informações eram analisadas e eram planejados os passos seguintes do trabalho ou era tomada a decisão de interromper o “trabalho” sobre o dito figurante. A continuação do trabalho significava a perspectiva de recrutamento, ou seja, mais encontros, a construção de um elo com o objetivo de criar uma amizade. O figurante seguia sem saber que encontrava com um espião, poderia no máximo pressentir que essa relação era um tipo de jogo duplo. Tudo dependia da capacidade do oficial e de sua habilidade em conduzir um jogo falso, em criar aparências. O oficial tchecoslovaco do serviço de inteligência era, pois, oficialmente um diplomata e como, por exemplo, funcionário da embaixada para as questões comerciais, poderia adquirir de seu conhecido uruguaio informações comerciais aparentemente relacionadas com o seu trabalho legal com o objetivo de melhorar as relações mútuas de comércio. Então era possível que não criasse nenhum tipo de suspeita ao seu interlocutor. Além disso, a Tchecoslováquia tinha relativamente um bom nome; era vista como um país comunista, mas mesmo assim de um modo diferente que a União Soviética; era um país com tradições democráticas (pré-guerra), com uma cultura conhecida e respeitada, com uma indústria desenvolvida; simplesmente um pequeno, simpático e distante país na Europa. Os espiões de Praga foram capazes de aproveitar essas aparências de uma forma excelente. E além do mais, conhecer a um diplomata, em certo sentido era nobilitante.

Espero que o leitor perdoe que estejamos aqui descrevendo amplamente os métodos de trabalho de oficiais de carreira do serviço de inteligência, mas isso permitirá compreender melhor a história que apresentaremos adiante.

Como o serviço de inteligência da StB era global, ou seja, atuava em todo o mundo, o herói de nosso texto não se encontrou com o diplomata-espião em Montevidéu, mas sim em Nova Iorque. Foi assim que começou a história que teve um final diferente do que o já conhecido caso de Vivian Trias.

Em Nova Iorque, um jovem diplomata uruguaio iniciante conheceu a uma pessoa também jovem da Tchecoslováquia, que lidava com questões de direito internacional e assim como o uruguaio, trabalhava na secretaria da Organização das Nações Unidas. O advogado uruguaio não tinha noção de que o seu amigo tchecoslovaco tinha algo a ver com o serviço de inteligência comunista. Seu conhecido  da cortina de ferro, por sua vez, praticamente não teve outra saída que não fosse concordar em colaborar com a StB antes de viajar para Nova Iorque – caso não o fizesse, a sua carreira seria interrompida logo no início e teria permanecido em Praga. Logicamente, cada destino é uma questão individual e os casos eram vários, mas aqui estamos falando do início dos anos 60 do século passado, quando a Tchecoslováquia era totalmente governada pelo Partido Comunista, que dez anos antes havia desencadeado um terror jamais visto no país, que continuava sentindo as suas consequências – principalmente na forma de medo; eram poucos aqueles que ousavam opor-se ao governo de uma maneira clara.

Fachada do Teatro Solís.

Como ainda não nos inteiramos dos detalhes do caso do colaborador ideológico tchecoslovaco  com quem o jovem advogado uruguaio se relacionou em Nova Iorque, não vamos revelar o seu nome, somente o seu codinome. Tratava-se do IS  “Severin”. No seu local de trabalho, ou seja, na ONU, era periodicamente controlado pelo oficial da inteligência e tinha que relatar sobre novos e interessantes contatos – assim foi novamente e a StB ficou sabendo sobre o uruguaio a quem ele conheceu.

Na época (ano de 1963) o dito advogado uruguaio trabalhava em uma função menos importante na seção de codificação na secretaria da ONU. Chegou a informação em Praga de que era um intelectual de convicções liberais e nacionalistas, que admira a Cuba revolucionária e que possui amplos contatos com representantes de países da América Latina que trabalhavam nos EUA. Estes dados foram suficientes para que o serviço de inteligência tchecoslovaco se interessasse por essa pessoa e continuasse a monitorar o seu caso – este uruguaio pretendia em março de 1964 regressar a seu pais com o objetivo de defender uma tese de dissertação e encontrar um trabalho apropriado em Montevidéu.

Esta notícia chegou desde a rezidentura da StB em Nova Iorque para a central da inteligência em Praga e, dali, para a rezidentura em Montevidéu. Foi então ordenado à rezidentura no Uruguai para que fizesse o contato, apresentando-se como conhecidos do “Severin” de Nova Iorque, um pretexto para conhece-lo. Aqui logicamente foi usado o verdadeiro nome do tcheco, pois o advogado uruguaio não sabia que a pessoa com quem esteve em Nova Iorque trabalhava para a StB e possuía um codinome secreto.

Salão do antigo restaurante El Águila. Hoje, Rara Avis.

O “trabalho” feito por “Severin” ainda em Nova Iorque, conforme a informação enviada para Montevidéu, “está somente em um estado inicial sem o aprofundamento de um ‘trabalho’ operacional”. No dia 6 de abril de 1964, o camarada Amort  (codinome), oficial da inteligência da rezidentura em Montevidéu, realizou o primeiro contato: visitou-o em sua casa, a fim de dar lembranças de “Severin” e convidá-lo para um encontro em um  restaurante. Realmente, no dia 9 de abril, houve um encontro de Amort com o jovem advogado uruguaio no restaurante El Águila no prédio do Teatro Solís, na Praça Independência [no lugar hoje funciona o restaurante Rara Avis]. Durante o encontro que durou das 21:00 às 23:30, o funcionário tchecoslovaco da inteligência começou a “trabalhar” esta pessoa. Os encontros seguintes ocorreram novamente em maio e junho, em restaurantes de Montevidéu. Com base naquilo que o funcionário da inteligência ouviu do uruguaio e relatou a Praga, foi decidido que Amort deveria continuar a ocupar-se dele. Para o serviço de inteligência, não somente era tentador o fato de que este “tipo” era professor na faculdade de direito, assim como também trabalhava no Banco de Seguros, mas, principalmente, por ter se tornado conselheiro do Ministério das Relações Exteriores; por isso a sua importância cresceu imensamente aos olhos da inteligência tcheca. Houve uma pausa de três meses nos contatos, mas no final de 1964, Amort intensificou novamente as suas atividades quanto ao jovem advogado. Após os encontros em dezembro de 1964 e janeiro do ano seguinte, Amort caracterizou o seu contato com as seguintes palavras:

Paollilo é um jovem e talentoso advogado com especialização em direito internacional. Estuda cientificamente a OEA. Confirmou que gostaria de trabalhar na OEA e tem perspectiva de ser empregado na mesma por intermédio do MRE…é antiamericano. Define os americanos como discriminadores da América Latina…é um nacionalista uruguaio…É inteligente, concentrado…fica intrigado por ainda não ter recebido uma carta de M…

Quanto a última observação, devemos esclarecer que, por medo de que algo fosse descoberto, a StB que controlava a correspondência de “Severin”, o proibiu de corresponder com o uruguaio. Amort tentou de alguma maneira explicar ao advogado o porquê de M. não lhe escrever, mas ao que parece estes esclarecimentos não o convenceram. Amort, no final deste relatório propôs para que o advogado fosse introduzido nos planos de trabalho da rezidentura e que prosseguisse o “trabalho de figurante” com ele.

A central em Praga chamou a atenção de Amort que, para que isso pudesse acontecer, ele deveria primeiramente reunir todas as informações sobre o futuro figurante e definir na proposta de “trabalho” se deve ser trabalhado como um futuro agente ou um futuro contato secreto.

Amort cumpriu essas exigências em março de 1965 enviando a Praga um dossiê completo sobre o advogado uruguaio.

Vale a pena citar as palavras escritas pelo funcionário tchecoslovaco da inteligência na ampla descrição das características, as quais – como logo veremos – foram bem verdadeiras e, de uma certa maneira, nada promissoras para a StB:

… parece ser um homem honrado. É nacionalista com uma visão crítica ao seu redor. É muito inteligente…É corajoso e possui um sentido de justiça. Não é do tipo que venderia suas convicções políticas em troca de um boa função em serviços no exterior ….

Para a StB, de acordo com a descrição, a dita pessoa surge como sendo bem interessante – entre os seus antigos alunos da faculdade de direito encontravam-se alguns funcionários importantes do MRE uruguaio, inclusive o vice-ministro das relações exteriores; ele próprio cumpriu por várias vezes a função de conselheiro para o MRE e elaborou diversos documentos importantes para o ministério. Chegava a emprestar esses documentos para Amort, pois não eram secretos.

Amort estava convencido de que entre ele e o jovem advogado cheio de perspectivas havia se formado uma amizade e via uma chance de um rápido “trabalho” sobre o figurante que – assim presumia – poderia já em 1966 ser recrutado como agente.

Em abril de 1965, a central designou um codinome para o figurante. A partir de agora deveria ser descrito nos relatórios como “Roger”. Amort aconselhou a “Roger” para que no âmbito de sua atividade, se concentrasse na OEA. Esta organização interessava ao serviço de inteligência tchecoslovaco de um modo especial; era vista como uma organização pró-americana e pretendia-se aí atingir a posição dos EUA no continente sul-americano. Em dezembro de 1965 seria feita a “entrega” do figurante, ou seja, de “Roger” para outro funcionário da rezidentura, o camarada Trnka  (codinome), mas Amort continuava a conduzir os encontro com o figurante ainda em janeiro de 1966. Enquanto isso, “Roger” começou a ficar bem mais ativo politicamente no partido Colorado (grupo de Michelini), o que, na opinião de seu oficial condutor, era um bom sinal. Por ocasião do ano novo, o presenteou com 3 garrafas de whisky. O camarada Trnka começou a se encontrar com “Roger” em abril de 1966 e registrou, por exemplo, que apesar de vários empregos o figurante continuava a ter pouco dinheiro e que trabalhava demais. Trnka escreveu em um dos relatórios, que “Roger” continuava a achar estranho que o seu conhecido tcheco dos tempos de trabalho para a ONU não lhe escrevia. A central tranquilizou a Trnka, informando que a relação entre eles havia sido somente superficial e não há por que se preocupar com esse fato. Este elemento, aparentemente banal, também pode ter sido a causa do desenrolar dos acontecimentos posteriores.

Mas, falando em banalidade, o fato de que esse trabalho devia ser exato e tudo tinha que ser anotado, pois inclusive acontecimentos aparentemente insignificantes podiam com o tempo ser importantes. Como exemplo, a anotação do camarada Trnka no seu relatório de maio de 1966, onde ele descreve o motivo da interrupção nos encontros com o figurante, causada por uma enfermidade do uruguaio: dores por motivo de cálculos renais.

Este detalhe na verdade não teve importância sobre o desenrolar dos acontecimentos, mas demonstra que o bom funcionário da inteligência deve saber realmente tudo sobre a sua vítima.

Os encontros prosseguiram; “Roger”, é verdade, trazia os materiais que Trnka pedia, mas não era nada secreto. Provavelmente aqui se tratava de que para o uruguaio era mais fácil, por exemplo, ir até o posto americano da USIS em Montevidéu e lá emprestar alguma coisa. A boa notícia era somente a de que “Roger” tinha cada vez mais problemas financeiros, que não tinha nem condições materiais para fazer as reparações indispensáveis em seu automóvel. Assim como Trnka escreveu em um dos seus relatórios, esta era: uma ótima “plataforma para uma gradativa aproximação do figurante para colaborar conosco”, ou seja, isso criava uma oportunidade para pedidos bem mais ousados do oficial condutor para com o figurante e, finalmente, para a implantação de uma proposta de premiação financeira pelas informações fornecidas.

No trabalho do funcionário do serviço de inteligência sempre chega aquele momento quando ele precisa arriscar. No caso dos encontros com “Roger”, tratava-se de reconhecer o momento quando o uruguaio, na opinião de seu oficial condutor, estivesse maduro para conhecer a verdade, ou seja, quando o oficial lhe revelará que na amizade entre eles, existe alguma coisa a mais, que na verdade, o objetivo desta relação é adquiri-lo como colaborador do serviço de inteligência. Trnka pôde pensar que a situação já havia amadurecido para este momento, quando o uruguaio lhe confiou, durante os encontros, sobre os seus problemas financeiros. Tudo levava a crer que daria certo: o figurante possuía convicções antiamericanas, tinha contatos promissores, era talentoso e inteligente e, o mais importante: comentou sobre os seus problemas financeiros; esse era aquele ponto onde seria possível pega-lo, propor-lhe pagamento pelo fornecimento de informações secretas. Sempre foi levado em consideração que durante a colaboração era possível educar o agente, convence-lo ideologicamente das razões comunistas, ensiná-lo os princípios da clandestinidade. “Roger” era jovem, então, na opinião de Trnka, era possível dar-lhe formação, ensinar-lhe. Havia somente uma coisa que preocupava ao espião tchecoslovaco – o jovem advogado, durante as suas conversas, demonstrava com demasiada frequência a sua exagerada sensação de independência; repetia demais que preferia ser independente do que vender-se por um bom posto de trabalho e desistir de suas convicções.  Trnka comentou esta questão com as seguintes palavras: “cheguei à conclusão de que se trata de uma pessoa com um complexo claramente desenhado quanto a um tipo de independência absurda e uma dignidade que não tem nada a ver com a realidade”. Apesar desta avaliação, o funcionário da inteligência decidiu arriscar e designar tarefas para que o figurante as cumprisse. Tratava-se concretamente de que “Roger” elaborasse para Trnka um trabalho sobre a posição do Uruguai durante a última Assembleia Geral da ONU, com especial atenção as questões políticas e econômicas; se houve alguma mudança na posição do Uruguai e em caso positivo, quais eram e porquê. Também pediu a elaboração de um esquema de organização do MRE Uruguaio, em especial daquelas seções que se ocupavam da problemática de países socialistas e os EUA. Na opinião de Trnka estas tarefas eram naturais, pois “Roger” sempre dizia que “deseja sempre nos ajudar, desde que estivesse ao alcance de suas possibilidades”.

Dessa vez, Trnka teve que escrever em seu relatório uma coisa que não fez nos anteriores: “A reação de Roger a este pedido foi bem interessante. Chamou-me a atenção de que pode elaborar para mim as informações exigidas sem problemas, assim que estas chegarem ao Uruguai, […] mas as suas anotações não irão conter nada que não seja conhecido ou publicado oficialmente. Não exclui a possibilidade que durante conversas com os seus conhecidos no MRE uruguaio possa saber algo a mais do que seja conhecido oficialmente, mas estas informações ele não me fornecerá, pois não pretende ser informante para um país estrangeiro. Isso é absolutamente contrário aos seus princípios como também ao seu princípio de independência completa”. Também disse que certamente Trnka o compreende, pois “como cidadão da República Socialista da Tchecoslováquia agiria da mesma forma diante de um pedido semelhante feito a ele por algum representante de um país estrangeiro em nosso país”.

O espião anotou que esta resposta dava a clara impressão de ter sido preparada anteriormente em caso de que justamente uma proposta como essa surgisse. Logicamente Trnka rebateu que nunca havia pensado em abusar da sua confiança para adquirir informações secretas. Acusou a “Roger” de falta de vontade para colaborar, pois pensava que as suas garantias anteriores sobre vontade em ajudar não fossem somente frases vazias.

A parte seguinte da conversa também é muito interessante, quando “Roger” reagiu ao argumento anterior de Trnka, que a Tchecoslováquia, pois, não possui nenhum interesse desse tipo relacionado com o Uruguai. O jovem advogado respondeu que entretanto, provavelmente a Tchecoslováquia possui algum interesse pois, caso contrário, ela não estaria presente por aqui. Disse ainda –  e isso é o mais importante nesta argumentação – que o “Uruguai é um lugar ideal para desenvolver atividades que ultrapassem a sua importância para além do Uruguai”.  Mas para sua decepção, o pior foi que “Roger” também disse, e diretamente, durante a conversa, que “não vai dar uma de espião em prol de nenhum império estrangeiro, pois isso vai contra seus sentimentos patrióticos como cidadão do Uruguai “.

Trnka teria respondido: Isso é um absurdo, pois não esperava nada disso de “Roger”; mas, para ele já estava claro que havia perdido um agente em potencial. Esta conversa decisiva ocorreu no dia 9 de janeiro de 1967 no restaurante Gruta Sur em Montevidéu.

O funcionário da inteligência juntamente com o residente analisou toda a situação e chegaram à conclusão que já não fazia sentido seguir “trabalhando” a este figurante. Entraram também em acordo de que a reação dele não foi emocional, mas sim pensada e preparada com antecedência, ou seja, demonstrando que já havia pensado antes sobre esta questão.

Também decidiram que por motivos táticos não seria possível interromper o contato imediatamente, para que o tipo não tenha a impressão de que caso não recebam nada secreto, então não estão interessados em nenhum contato. A relação deveria ser apagada gradativamente.

A central aceitou estas conclusões na informação de 20 de fevereiro e isso de fato significava o fim do “trabalho” de inteligência sobre “Roger”. Em março ainda chegou de Praga a recomendação para aproveita-lo oficialmente para adquirir informações “contra os americanos”.

Um outro momento não deixa de ser menos interessante: no encontro de 24 de fevereiro de 1967, o advogado uruguaio durante a conversa mencionou que possui um novo trabalho; tornou-se professor de direito internacional em um curso especial para o exército uruguaio. Trnka tratou isso como uma isca na qual deveria ser pego e como se não estivesse interessado disse brincando que só falta o “Roger” trabalhar na marinha de guerra para que domine todas as forças armadas, mas disse isso em tom de brincadeira e mudou o tema da conversa.  Tratou essa menção como um teste. Por isso relatou a Praga que a decisão sobre manter este contato somente em forma oficial era bem correta.

Seja como for, o advogado não elaborou um trabalho sobre o Uruguai durante a Assembleia Geral da ONU, nem mesmo de uma forma legal e não secreta, mas o oficial da inteligência taticamente silenciou sobre o caso.

As conclusões acima foram confirmadas no documento final na subpasta dedicada a este contato. O dito documento chama-se Proposta de envio da pasta para o arquivo. Ou seja, isso é o encerramento de um caso já morto.

Data de 11 de fevereiro de 1971. Na proposta foi escrito:

…Quanto a proposta indireta de ajuda de caráter de inteligência, respondeu de forma negativa. Para criar uma impressão de que se tratava de um contato de amizade, o oficial de carreira continuou a encontrar com Roger durante algum tempo e, quando o mesmo deixou o país, o contato foi interrompido. O último contato foi anotado em 13.4.1967; a partir desse momento não houve nenhum contato e por isso a pasta foi enviada para o arquivo. 

O documento foi assinado pelo coronel Jezerský.

O dito uruguaio fez depois uma excelente carreira diplomática. Dessa vez o jogo de aparências do serviço de inteligência não funcionou. Sem dúvidas este caso ainda foi analisado pela StB; sabemos que todas as falhas foram levadas em conta, para aumentar a eficácia do serviço. É preciso dizer que situações como essa são calculadas no custo de que a aquisição de um agente é acompanhada de várias tentativas fracassadas como essa; inclusive tentativas de dezenas de pessoas diferentes. É nisso que consistia e continua a consistir o trabalho de oficiais profissionais da inteligência.

O serviço de inteligência da StB não podia ser diferente do que outros serviços quanto a isso. Para conhecer de uma maneira complexa as atividades dos espiões tchecoslovacos na América Latina precisamos também descrever casos como este acima mencionado.

Aqueles que são contrários a revelação do conteúdo das pastas dos serviços de inteligência comunistas argumentam que não é digno publicar as “sujeiras” existentes nas pastas. Os materiais destes serviços, pois, são repletos de fraquezas humanas, jogos, situações etc, onde as pessoas decepcionam. Mas essa não é a verdade completa sobre as pastas; assim como podemos ver, também existem nelas outro tipo de histórias que demonstram dignidade e força de caráter de pessoas que não se deixaram enganar por um de jogo de aparências, nem pela tentação criada por algum oficial de serviços de inteligência de países comunistas. Estou convencido de que histórias como esta são construtivas e, por essa razão, é mais do que razoável descreve-las.

Vladimír Petrilák

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One thought on “Não vou dar uma de espião!

  1. Parabéns pelo trabalho realizado. PRecisamos desvendar o que ficou naqueles anos, mas com outro enfoque. Atualmente, parece que só a Esquerda tinha heróis e que queriam, realmente, instalar uma democracia neste País. Adquiri o livro diretamente no site da editora.

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