A história dos historiadores x os arquivos do serviço secreto comunista

Compartilhe:

Ou, o que o relatório: Avaliação das atividades da I Diretorado do ano de 1962 nos ensina.

Assim foi nomeado o documento, cujo fragmento encontrado na página 7, exibiremos logo abaixo deste artigo. O documento inteiro contém 37 páginas e é assinado pelo chefe da inteligência da StB, o coronel Josef Houska. Trata-se de uma análise completa que cobre o período de um ano de trabalho, e é endereçado aos superiores do coronel, ou seja, a cúpula do Ústřední výbor Komunistické strany Československa – ÚV KSČ (Comité Central do Partido Comunista da Tchecoslováquia). O fragmento do documento apresentado abaixo é muito interessante, e nos obriga a voltar ao título deste artigo, pois ele conflita totalmente com o que muitos historiadores afirmam sobre  a América Latina (geralmente esquerdistas), que no contexto da Guerra Fria ensinam que o continente estava de facto fora do interesse da União Soviética, enquanto EUA o consideravam como a área de  influência. 

Como exemplo, encontrei expressão deste pensamento no trabalho do historiador uruguaio Roberto García Ferreira – na obra chamada Espionaje y política: la guerra fría y la inteligencia policial uruguaya, 1947-64 . Roberto afirma, que América Latina era, para Moscou, muito distante e, por isso, estaria fora do alcance da sua  ação direta. Este argumento, entre outros, contribui para a tese de que “a paranoia anticomunista” dos governantes da América Latina da época foi, na verdade, não somente um comportamento importado dos EUA, mas principalmente uma reação desarrazoada para um perigo inexistente e inventado. O autor mencionado aponta também no seu estudo, como fonte, os arquivos da polícia uruguaia, que perseguia e espionava (o politicamente irrelevante) partido comunista. No exemplo logo a seguir, ele apenas argumenta a inviabilidade da influência soviética . Assim, citando Ferreira²: “a América Latina foi uma área de baixa prioridade, porque zonas de influência de todo o conflito bipolar pareciam ser tacitamente respeitadas” (há uma nota de rodapé para este trecho em que Ferreira acrescenta uma citação que baseado em evidências de que, assim como Stalin não permitiu eleições livres em estados satélites soviéticos, os EUA fizeram o mesmo, se referindo à América Latina como área de influência americana). Afinal, quando ele escreve sobre a democracia no continente, coloca a expressão (democracia) entre aspas.  

Resumindo, a América Latina fica muito longe de Moscou e, por essa razão, nenhuma influência poderia ser levada a sério, pois qualquer ação seria logisticamente inviável e também, ante a proximidade com os EUA, de eficácia duvidosa. 

 A comprovação da falsidade desta e de outras teorias semelhantes se encontra neste site e nas páginas de nossos livros, onde escrevemos a respeito do imenso interesse da inteligência tchecoslovaca sobre a região. Tendo como base os  documentos do Arquivo do Serviço de Segurança em Praga, o ABS, mostramos que a inteligência da StB teve no continente inteiro, durante diferentes momentos da segunda metade do século XX, entre 3 a 11 rezidenturas ativas, a partir das quais eram comandadas ações de espionagem em larga escala. 

Durante os anos 60, a central de Praga enviava a essas bases em torno de 10 a 15 mil dólares por ano (valores sem correção monetária), e estas eram despesas operacionais, que não incluíam os salários dos agentes ou o orçamento para os equipamentos de espionagem. E veja, nós apenas estamos nos referindo à inteligência tchecoslovaca, a StB, mas e as outras agências de inteligência? Sabemos que a América Latina foi campo de operação principalmente da KGB, e também das inteligências da Polônia, Hungria, Alemanha Oriental ou Bulgaria. Não podemos nos esquecer da influência da China, que também foi monitorada cuidadosamente pela StB. Trata-se de influência de espionagem, é claro.

Mas voltando à StB. A inteligência tchecoslovaca focava suas atividades principalmente em áreas e objetos como OTAN, EUA, democracias ocidentais (Alemanha Ocidental, Grã Bretanha, França, Itália, Áustria etc.) e Vaticano. Estes países foram o alvo principal, mas certamente não o único. Como prova de que a América Latina não foi uma área de “baixa prioridade”, serve por exemplo a fotocópia abaixo – o fragmento mencionado de “Avaliação das atividades da I Diretorado do ano de 1962”. O próprio comandante do I Diretorado se orgulha das operações ativas executadas naquele ano por TODO o contingente da agência de espionagem. É um relatório do trabalho de todos os departamentos – começando pelo americano, leste europeu, asiático e africano. E aqui vem a surpresa! Nos primeiros lugares, o coronel Houska coloca operações ativas relacionadas a América Latina (em conexão com os EUA).  As  mais importantes operações  ativas (AO aktivních opatření) são: HLAS (voz) e Družba (Amizade). Hlas envolve a Organização de Estados Americanos e AO Družba (Amizade) é bem conhecida aos nossos leitores. As outras AOs mencionadas e em avaliação envolvem Alemanha Ocidental e Itália, Curdistão, África e alimentos americanos. É importante mencionar, que as primeiras operações ativas são classificadas como “intercontinental”, o quer dizer que o alcance delas inclui a América Latina inteira. E tudo tendo sido  planejado e executado pela StB.

É notório que a StB, geralmente, realizava estas operações a pedido – de fato por ordem -, da inteligência soviética, a KGB. Afinal, AO Družba foi realizada em cooperação com a KGB e a inteligência cubana. 

Serei sarcástico: não é curioso que os serviços de inteligência da StB e da KGB não respeitassem a divisão das zonas de  influência durante a Guerra Fria e não quisessem enxergar que estavam investindo dinheiro em países que para eles eram de baixíssima prioridade? Por que os Soviéticos (KGB) injetaram US$  280.000,00 (sem correção)¹ na AO Družba, operação de apoio a Cuba, quando não tinham  qualquer interesse no continente? Sim, claro, os espiões dos anos 60 não tiveram acesso ao trabalho “muito bem fundamentado” dos historiadores latino americanos contemporâneos, não chegaram a esse nível de informação. O próprio comandante coronel Josef Houska , talvez possamos acusá-lo, de atroz incompetência quando realizou naquela localidade irrelevante do planeta a operação ativa mais importante da StB do ano 1962. Conforme Houska, essas operações eram mais importantes do que as realizadas na Alemanha Ocidental, Itália ou por exemplo na Áustria. Houska não leu nada de Ferreira. Ou foi um comunista fraco, que não seguiu a cartilha, ou não entende nada do seu trabalho. Mas, como durante nos anos 60 a inteligência StB alcançou os seus melhores resultados, este segundo argumento não seria verídico. Então podemos concluir que coronel Houska não respeitou nada das conclusões a que chegaram os grandes historiadores renomados de hoje em dia. 

De qualquer forma, a afirmação de que América Latina estaria fora do interesse dos comunistas tem que ser levada como uma informação, no mínimo, enganosa, não tendo nenhuma base na realidade. E claro que as opções de operações eram mais limitadas para o bloco soviético, mas a situação muda radicalmente em 1959 com Cuba. As interferências da ilha nas soberanias do países da América Latina seriam impossíveis sem o acordo tácito com a ala comunista – apesar de um leve desvio na linha de Moscou. 

A StB tchecoslovaca jamais  teve a América Latina como um continente irrelevante ou inacessível e por isso uma área onde não valeria o esforço de  empreender seus intentos. Empreendeu e empreendeu por muito tempo. A partir de 1952, até o sua queda no início do ano 1990.

O trabalho do Roberto García Ferreira pode ser acessado por exemplo aqui: 

https://uruguay.academia.edu/RobertoGarcíaFerreira

O trecho citado foi retirado do documento: ABS I. správa StB, č. I/SF/0024

E aqui, como complemento, temos um trecho de documento que avalia o trabalho da inteligência da primeira metade do ano 1964, quando foram incluídas no topo da lista de prioridades as “medidas ativas mais importantes” que foram realizadas na América Latina – AO PLAMEN e AO TORO.
Ou seja, a América Latina não era prioridade apenas no ano de 1962, mas sempre foi assim. Inúmeros exemplos do que estamos explicando podem ser encontrados nos documentos da StB.

 

____________________________

1 Vide: Mauro Kraenski e Vladimír Petrilák, 1964 O Elo Perdido: o Brasil nos Arquivos do Serviço Secreto Comunista, Vide 2017, p. 241.

2 García Ferreira, Roberto. 2011. «Espionaje Y Política: La Guerra Fría Y La Inteligencia Policial Uruguaya, 1947-6»4. Revista De Historia, n.º 63-64 (enero), 13-33.

Compartilhe:

3 thoughts on “A história dos historiadores x os arquivos do serviço secreto comunista

  1. Excelente conteúdo e trabalho. Curioso que tantos anos tenham se passado e ainda existam supostos historiadores dotados da mentalidade tão inocente de que a América Latina não era de relevante interesse soviético. Se não for inocência, é falta de escrupulos! Ambos os casos são igualmente graves para a memórias que deveriam ser registradas com acurácia pelos historiadores independentemente de seus vieses ideológicos.

  2. Aguardamos os próximos livros! É imperativo revelar os nomes de todos brasileiros que cooperaram com a StB.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *