“Não havia nada de bom no comunismo, era puro mal” diz especialista sobre a StB

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Entrevista com o pesquisador Radek Schovánek publicada em 08/09/2019 no site Info.cz, por Aneta Černá.

Trinta anos se passaram desde a Revolução de Veludo. No entanto, não se pode dizer que a era do comunismo definitivamente acabou. A questão da cooperação com a Segurança do Estado (StB) ainda está viva, principalmente porque ex-colaboradores do regime Vermelho ainda mantêm altas posições políticas, segundo o pesquisador Radek Schovánek. Além disso, mesmo após três décadas de liberdade, muitos dos crimes comunistas não foram investigados e falta um banco de dados acessível e completo dos membros do StB. Uma tentativa de corrigir as injustiças de processos políticos dos anos 50 ocorreu na década de 60. Mas o trabalho é dificultado pela falta de documentos, que aparentemente foram destruídos inclusive após a revolução. “Existe uma forte suspeita de que um grande número de pastas originais tenha sido destruído nos arquivos do Ministério do Interior na segunda metade dos anos 90”, diz o pesquisador Radek Schovánek, que testemunhou, entre outros, contra Andrej Babiš (atual premier tcheco) em um tribunal que julgou a cooperação do primeiro-ministro com o StB.

Esforços parciais para investigar os crimes do comunismo começaram já nos anos 60, com o início do afrouxamento político. Essa foi a primeira tentativa de explicar as injustiças da década de 1950?

Houve várias tentativas, a primeira ocorreu em meados da década de 1950. Naquela época, porém, dizia respeito apenas ao esclarecimento do processo de Slánský [membro do Partido Comunista condenado a morte]; Demorou muito tempo para investigar os crimes cometidos contra pessoas “comuns”. Após a queda do Ministro do Interior Rudolf Barák e as grandes anistias de 1960 e 1962, iniciou-se uma investigação sobre a ilegalidade da década de 50. Os tribunais não começaram repentinamente a abordar a reabilitação de maneira massiva e pública. Os indivíduos foram punidos, inclusive receberam penas de um ano, e cumpriram metade ou nada, o que era absolutamente inconcebível com o que haviam feito. Naquela época, a primeira grande onda de destruição de pastas de agentes ocorreu por medo de serem processados pelos tribunais.

Pesquisador Radek Schovánek • Foto: Profimedia

Parece que o partido estava tentando ocultar essa investigação. O público sabia dos julgamentos e reabilitação em andamento na década de 1960?

Quando Rudolf Slánský e seu grupo foram reabilitados em 1963, a escritora Heda Margoli, cujo marido foi uma das vítimas do julgamento de Slánský, contrabandeou um relatório de reabilitação para Paris, onde foi publicado por Pavel Tigrid na revista Testimony. Dessa forma, as pessoas poderiam aprender mais sobre a investigação ilegal. E, à medida que o país se abriu gradualmente na década de 60, histórias semelhantes de injustiça foram ficando cada vez mais conhecidas.

A década de 60 com a Primavera de Praga mudou o modo de trabalho da Segurança do Estado (StB) ou não houve qualquer influência na sua atividade?

Ao longo de sua existência, a Segurança do Estado foi uma ferramenta do Partido Comunista, e suas atividades e objetivos acompanharam as mudanças no partido. Quando o partido desencadeou o Terror no início dos anos 50, foi a StB  quem o executou. E quando a pressão diminuiu um pouco na década de 60 devido à situação internacional e às mudanças sociais, a StB fez exatamente o que o partido queria. Mas as práticas de repressão da StB durante a era comunista nunca desapareceram completamente. Em 1968, a StB ainda lutava contra o inimigo interno e monitorava cuidadosamente o K 231 (Clube de Ex-Presos Políticos) e o KAN (Clube Dedicado aos Sem-partido). Tudo sob o controle do partido.

A StB e o partido estavam direta e firmemente ligados; portanto, quando na década de 60 diferentes correntes de opiniões apareceram no Partido Comunista, a StB foi dividida entre aqueles que apoiavam a liderança de Dubcek e os ortodoxos ligados diretamente a Moscou e à KGB. Depois de 1968, houve uma mudança fundamental na StB e no partido. Após a invasão [das tropas do pacto de Varsóvia], não havia mais ideais, e aqui as correntes de opinião normalizaram-se [o período após o ano de 68 é chamado de normalização, quando somente a ideologia comunista era permitida na vida social e o modo ortodoxo de pensamento voltou] como no partido. Centenas de membros do StB foram expulsos, embora seja verdade que alguns deles foram autorizados pelo regime a continuar trabalhando em vários empregos privilegiados. Muitas vezes, depois de deixar a StB, continuavam atuando como seus informantes.

O trabalho do StB foi afetado pela onda de emigração posterior, que poderia ter afetado agentes e funcionários da inteligência?

Naquela época, o serviço de inteligência no estrangeiro ficou enfraquecido. É claro que os funcionários de contra inteligência também emigraram, mas trabalharam principalmente em nosso território e, portanto, sua perda não foi tão fatal. A StB simplesmente “pescou” novos. No entanto, uma perda significativa foi a emigração de alguns oficiais de carreira do serviço de inteligência, como Ladislav Bittman, František August ou Josef Frolík, que conheciam os nomes de centenas de agentes e simpatizantes que serviam aos comunistas no ocidente. Obviamente, conseguir novas pessoas e contatos era muito mais difícil do que na Tchecoslováquia. Os colaboradores da StB foram aproximadamente 120.000 ao longo de sua existência. O serviço de inteligência nunca teve mais de 9.800 oficiais, contando os tchecos lotados em cargos nas embaixadas. Os estrangeiros adquiridos para cooperação foram cerca de três mil.

Você mencionou uma onda maior de ação de eliminação dos arquivos da StB na década de 60. Além deste período, houve outra destruição em massa de documentos durante a era comunista?

O arquivo StB era na verdade um registro operacional. Isso significa que, quando uma pasta era aberta, seja para uma pessoa vigiada ou para um agente recrutado, essa ficava “viva” enquanto dado caso não era encerrado. A pessoa que posteriormente depositava a pasta no “arquivo” marcava a chamada marca de destruição, ou seja, uma nota que determinava quando a pasta deveria ser destruída ou transferida para microfilmes. Esse prazo era determinado de acordo com a importância das informações na pasta arquivada. Ela poderia ser destruída imediatamente se, por exemplo, fosse registrada por equívoco ou não houvesse nada operacionalmente interessante, mas a maioria dos períodos de destruição era de 5, 10 e 15 anos. O período de retenção de 20 anos era usado apenas para eventos importantes, geralmente destinados a diplomatas. Pastas que eram armazenados permanentemente eram muito raras.

Os documentos eram destruídos durante todo o tempo em que a StB existiu. Isso tem sua lógica, porque o serviço secreto analisa o que está acontecendo na sociedade e prevê as ameaças para o futuro. Os materiais preservados são avaliados de acordo com sua utilidade para o futuro. Com o tempo, cada notícia perde seu valor e atualidade. É claro que, após dez anos, acontecia que a StB acabava destruindo alguma pasta dedicada a alguma pessoa, e no ano de 1977 esta pessoa assinava um documento chamado  Carta 77 [um dos atos de oposição mais importantes contra o regime comunista] e para a StB as informações desta pasta destruída seriam muito uteis, mas casos como estes não foram muitos. Estamos em uma situação paradoxal ao estudar o arquivo de Segurança do Estado. Quando usamos seus arquivos e pastas, voltamos ao passado estudando este regime. Mas os materiais de arquivo foram criados pelo motivo oposto, com vista ao futuro. Eles tinham a ver com a situação atual, e somente foram arquivados aqueles que poderiam ser úteis no futuro.

 

 Os documentos do StB foram liquidados também após 1989?

As pastas foram destruídos principalmente pela contra inteligência militar, o que também pode ser encontrado nos protocolos de registro, onde há a anotação de que algo foi destruído, inclusive nos anos 1994 ou 1995. Mesmo no Ministério do Interior havia pastas destruídas. Até meados de 1991, cerca de 1.500 pastas de pessoas monitoradas e 2.000 pastas de agentes foram convertidas em microfilmes, o que significa que os funcionários no arquivo poderiam ter escolhido 20 folhas de pastas de 300 páginas para cópia e destruído o original. Destruição  também ocorreram no Escritório de Contatos Exteriores e Informação [atualmente o serviço de inteligência da Republica Tcheca democrática], onde eu testemunhei a destruição de pastas inclusive em 1995. Existe ainda uma forte suspeita de que um grande número de pastas originais tenha sido destruído nos arquivos do Ministério do Interior do país na segunda metade da década de 90. Se essa informação for confirmada, será uma constatação escandalosa, porque em muitos casos os tribunais rejeitaram documentos em microfilmes como evidência de cooperação, porque não os consideravam verificáveis. É difícil para mim imaginar que, por exemplo, havia alguma pasta de agente no original em 1996. Acho que saberemos a resposta para esta pergunta em breve.

Como é possível que, mesmo alguns anos após a queda do comunismo, as evidências da então colaboração com o regime totalitário tenham sido destruídas?

Os serviços de segurança e a sua estrutura do Ministério do Interior eram muito difíceis de controlar, e o arquivo sempre foi uma ‘Cinderela’ [assim como no conto de fadas – era rejeitado, mas teve um final feliz]. Quando os materiais foram reunidos, era impossível saber se algumas das pastas haviam sido destruídos antes ou depois de 1989. Quando o BIS [serviço de contra inteligência após queda do comunismo] se mudou de [Rua] Veleslavín em 1993, consegui chegar lá com alguns colegas e vi dezenas de sacos com documentos da StB, todos destinados a destruição. Entre eles estavam documentos essenciais, como o contrato de um dos agentes mais importantes do StB, que atuava no cenário da Carta 77 e do VONS (Comitê de Defesa dos Acusados Injustamente). Segundo os documentos, o homem deveria receber 20 mil coroas por seis meses de cooperação. Naquela época, um carro custava cerca de 35.000 coroas, então era muito dinheiro. Era o contrato original que ia ser destruído.

Os documentos preservados do StB estão de alguma forma acessíveis ao público?

Eles podem ser acessados através do eBadatelna, onde apenas estão disponíveis as pastas de contra inteligência e alguns acervos das atividades do Ministério do Interior, como os materiais dos vice-ministros ou de controle interno do Ministério do Interior. Trata-se principalmente de registros de arquivo que digitalizamos há cinco anos atrás no Instituto para o Estudo de Regimes Totalitários (ÚSTR) antes que a direção atual, liderada por Zdeněk Hazdra, assumisse o controle. (Nota: Radek Schovánek foi afastado do Instituto em abril de 2015, o motivo oficial foi reorganização.) A digitalização atual é muito lenta e acho estranho que o Security Services Archive nem tente criar uma lista de membros do StB. Trinta anos após a Revolução de Veludo, ainda não sabemos quem trabalhou para a Segurança do Estado StB, e isso me parece absolutamente crucial. Também não existe uma lista disponível ao público dos materiais destruídos em 1989.

E, após esse tempo, você poderia descobrir o que foi destruído no final do comunismo?

Durante a destruição em 1989, foram feitas listas de materiais destruídos. A instrução então era organizar os documentos que não seriam necessários na nova era. A destruição não foi descontrolada, a idéia de que os funcionários da StB estavam destruindo tudo o que podiam está equivocada. É verdade que então máquinas de destruição de documentos falhavam, então estas pastas eram levadas para as cidades de Štětí ou Valdice, ou eram queimados em diferentes prédios militares. Mas a lista de documentos destruídos foi preservada. Até a presente data, apenas o arquivo não digitalizou esta lista e não a tornou acessível, para que fique imediatamente claro o que está no acervo e o que foi destruído.

Qual a porcentagem de documentos destruídos na época?

As chamadas pastas vivas de questões do inimigo interno, mantidas pelos funcionários da StB foram destruídos na sua esmagadora maioria, cerca de 90%. Por outro lado, as pastas de diplomatas e estrangeiros ou documentos relacionados a questões econômicas foram pouco destruídas. A pasta do casal Skvorecky não desapareceu porque  StB  pensou que os Skvorecky se tornariam embaixadores no Canadá e queriam ter alguns materiais sobre eles. Os materiais do arquivo em Brno foi amplamente destruído e os protocolos de registro foram destruídos em Pilsen antes de 1983. No entanto, o que foi armazenado no arquivo antes de 17 de novembro de 1989 foi essencialmente preservado.

 O senhor acha que a sociedade já é capaz de olhar com distância da era comunista, ou ainda existem muitas pessoas que recordam aqueles tempos, e que não conseguem ou não querem tomar distância disso?

Acho que podemos criar uma distância, mas é claro que depende dos indivíduos. Mas acho que o mais interessante e triste é que o consciência sobre as atividades da StB não esteja melhorando, pelo contrário. Eu pensei que, depois de 1989, a disponibilidade de informações aumentaria o conhecimento sobre cenário real da época, mas as pessoas ainda não conseguiam entender que, por exemplo, a cooperação com o StB era algo mal.

E pelo menos os tribunais têm conseguido definir que isso foi um mal?

Eles também não tiveram muito sucesso. Há juízes que decretam a prescrição dos casos, enquanto em outros lugares há de fato uma falta de desejo de punir os crimes da época. Mas o que me surpreende ainda mais é que, na maioria dos casos, os tribunais confirmam que algumas pessoas foram registradas injustamente como agentes. Isso é um absurdo. Uma situação semelhante pode ocorrer nos casos em que uma pessoa foi registrada como agente por um período muito curto, por exemplo, um mês. É provável que não tenha existido uma cooperação real. No entanto, houve apenas alguns casos deste tipo durante a existência do StB. Mas, no caso de Karel Srp, por exemplo, a cooperação com o StB durou vários anos, e há muitas referências ao seu trabalho nas pastas de outras pessoas, por isso não entendo por que o tribunal decidiu que foi registrado injustamente. Simplesmente, considero como uma sabotagem dos tribunais, e que eles não conseguem compreender de maneira suficiente esta questão.

Isto estaria relacionado ao fato de que, nos anos 90, foram muitos desses juízes que enviaram presos políticos para a prisão na era comunista?

Não creio que tenham sido esses mesmo juízes, embora nos tribunais ocorriam situações bastante absurdas. Por exemplo, em favor dos agentes registrados, testemunhavam nos tribunais os seus antigos oficiais condutores, que de repente diziam nos tribunais que as pasta foram falsificadas e as colaborações destas pessoas foram inventadas. Algo semelhante aconteceu no julgamento com Andrej Babiš, no qual eu fui testemunha. O que um oficial da StB disse no tribunal quando afirmou que tudo foi inventado? Ele diz que estava traindo seus superiores, roubando fundos de operação, colocando em risco informações classificadas, falsificando documentos oficiais e cometendo o crime mais grave que um membro das forças de segurança poderia cometer. Ele admite isso porque está prescrito o crime, mas ao mesmo tempo que exige que o tribunal o reconheça como uma testemunha credível. É um absurdo e como confirmado pelo Tribunal Constitucional da Eslováquia: não é possível as sentenças se basearem apenas nas alegações de ex-membros do StB, a menos que as conclusões sejam apoiadas por outras evidências documentais.

 Ainda vale a pena julgar os crimes do comunismo? Os culpados ainda estão vivos?

Ainda vivem pessoas que podem ser julgadas nos tribunais, porque algumas investigações estão em andamento desde meados dos anos 90. No entanto, penso que o tempo em que foi possível julgar e punir criminosos se foi. Hoje, acho necessário estudar, analisar e publicar os eventos daqueles tempos. Temos heróis sobre os quais estamos falando e descrevendo suas histórias, mas ainda nos faltam falar dos responsáveis. Mas um não pode existir sem o outro. A monstruosidade é causada por pessoas específicas, não por alguma instituição abstrata. E muitos deles estão agora em altos cargos na política.

Como isso é possível? É ignorância ou relativização do passado?

Hoje em dia, se algo da década de 1970 deve ser investigado repentinamente, essas pessoas não se lembram muito disso em detalhes, ou acenam com a mão que já faz muito tempo, e que ninguém se importa com isso mais, ou que agora já é muito tarde. Esse apatia pode dever-se à decepção de que, mesmo 30 anos após a Revolução, tudo não seja esclarecido e punido, essas pessoas esperaram demais por justiça. Para outros, a relativização serve para ordenar as suas memórias, mas também a sua consciência. É semelhante ao caso da Alemanha, onde o Holocausto foi relativizado até a década de 1970. Trinta anos após o fim da guerra, no entanto, uma geração de pessoas começou a se afastar e surgiu uma nova geração, que já era capaz de olhar para isso com uma distância maior.

Devido ao fato de que após a Revolução não conseguimos identificar e punir claramente os culpados, perdemos a capacidade de chamar as coisas pelo nome. Sempre tentamos encontrar algo de bom em tudo, mas o que havia de bom no comunismo? Prisioneiros? Saque a mosteiros e monumentos? Censura? É claro que em todas as épocas há pessoas que conseguem ficar bem e se beneficiar com a situação. Usando dessa lógica, eu posso dizer com cinismo que a Segunda Guerra Mundial também teve o seu lado positivo porque algumas pessoas receberam gratuitamente bens que pertenciam aos judeus. Essa abordagem e prática devem ser rechaçadas de uma vez por todas. Não havia nada de bom no comunismo, era puro mal.

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*RADEK SCHOVÁNEK (nascido em 1964), desde o início dos anos 90 trabalhou em diversas instituições que se dedicam ao estudo do regime comunista, como o Escritório de Investigações de Crimes Comunistas (UDV) o Instituto Eslovaco de Memória Nacional (UPN) e o Instituto Tcheco para o Estudo de Regimes Totalitários (ÚSTR). Atualmente trabalha no Ministério da Defesa da República Tcheca. É autor e coautor de vários livros e publicações sobre o período comunista. Está entre os principais especialistas sobre a StB na atualidade. Antes de 1989, foi membro da oposição ao regime comunista.

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