“Como é habitual em tempos de guerra, medo e sofrimento, o indivíduo deixava de existir como ser humano; só uma coisa importava: possuir um passaporte válido.”
Um passaporte válido e um visto. Isso era tudo o que se precisava para sair da Europa em 1942. Para se encontrar, como disse Erich Maria Remarque, na Arca navegando em direcção ao Monte Ararat.
“O navio estava a ser preparado para uma travessia – como a arca no tempo do dilúvio. Era uma arca. Cada navio que deixava a Europa naqueles meses de 1942 era uma arca. A América era o Monte Ararat e o nível das águas enchentes aumentava a cada dia.”
No seu romance “Uma Noite em Lisboa”, o famoso escritor, que efetivamente teve de fugir dos nazistas alemães para salvar sua vida, esboçou vividamente o drama de pessoas como ele, – subitamente proscritas, condenadas à extinção por um regime totalitário. O bilhete para a vida, naqueles dias, era um passaporte válido com um visto e um bilhete de passageiro num navio que navegava através do oceano para a liberdade.
Demorei-me a olhar fixamente para o navio. Profusamente iluminado, o barco aguardava fundeado no Tejo. Embora estivesse em Lisboa há já uma semana, ainda não me habituara à sua iluminação exuberante. Nos países por onde anteriormente passara, à noite as cidades jaziam escuras como minas de carvão, e uma lanterna nas trevas era mais temível do que a peste na Idade Média. Eu vinha da Europa do século vinte. A embarcação era um navio de passageiros; estava a receber carga. Eu sabia que o barco tinha partida marcada para a tarde do dia seguinte. À luz crua das lâmpadas despidas, caixotes de carne, peixe, conservas, pão e legumes iam sendo acamados no porão; os estivadores levavam bagagens para bordo, levantando grades e fardos tão silenciosamente como se nada pesassem. O navio estava a ser preparado para uma travessia – como a arca no tempo do dilúvio. Era uma arca. Cada navio que deixava a Europa naqueles meses de 1942 era uma arca. A América era o Monte Ararat e o nível das águas, enchentes, aumentava de dia para dia. Há muito que tinham submergido a Alemanha e a Áustria, alagavam agora a Polônia e Praga; Amesterdã, Bruxelas, Copenhagen, Oslo e Paris haviam já sido inundadas, as cidades da Itália tresandavam de infiltração e nem a Espanha estava a salvo. A costa portuguesa tornara-se a última esperança dos fugitivos, para quem a justiça, a liberdade e a tolerância eram mais importantes do que a pátria e os meios de subsistência. Portugal era uma ponte para a América. Quem não conseguisse alcançá-la, estava perdido, condenado à morte lenta num dédalo de consulados, esquadras de Polícia e repartições públicas, onde os vistos eram sempre recusados e as licenças de trabalho e residência impossíveis de se obter, uma selva de campos de internamento, pesadelos burocráticos, solidão e saudade onde se definhava perante a indiferença generalizada. Como é habitual em tempos de guerra, medo e sofrimento, o indivíduo deixava de existir como ser humano; só uma coisa importava: possuir um passaporte válido. (Uma Noite em Lisboa de Erich Maria Remarque; Tradução: Luís Coimbra, Editor: Saída de Emergência)
O Cabo de Buena Esperanza no porto do Rio de Janeiro. A bandeira espanhola, grande, para avisar os submarinos que era de um país neutro. Foto: Carlos Pérez de Rozas/Arquivo do Ayuntamiento de Barcelona (https://amensagem.pt/2022/06/27/roger-kahan-judeu-lisboa-ferreira-fernandes/)
Havia milhares de histórias deste tipo durante os anos da Segunda Guerra Mundial. No meu livro “A Traição Invisível: Brasileiros nos Arquivos do Serviço Secreto Comunista” (Vide, 2022), descrevo um deles. A arca era o navio de bandeira espanhola “Cabo de Buena Esperanza”, um navio que salvou milhares de vidas mas que se tornou famoso em 1946, quando coube-lhe a suprema honra de transferir para território espanhol os restos mortais do grande compositor e músico Manuel de Falla, que havia falecido na Argentina. (http://alernavios.blogspot.com/2017/07/cabo-de-buena-esperanza.html ).
A nossa história foi contada em 1941. Os passaportes foram emitidos na Tchecoslováquia, os vistos em Marselha, o navio partiu de Barcelona e atracou no Rio de Janeiro. O Monte Ararat era, portanto, o Brasil. Esta é a história de Anna e Oskar Guttman, judeus tchecoslovacos que, como muitos outros, tiveram de fugir de uma Europa onde foram ameaçados de extermínio. Após a guerra, Anna Guttman tornou-se, por várias razões, um objecto de interesse para os Serviços Secretos Tchecoslovacos, I. Diretório do StB. Descrevi o seu caso no capítulo VI do livro “A Traição Invisível”, que convido a ler …
Vladimír Petrilák
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