Olhando para o mapa da América do Sul, no qual foram marcados em cor vermelha os países onde o serviço de inteligência tchecoslovaco da StB possuía as suas rezidenturas, podemos ver pontos em branco, o que significa que o serviço de inteligência comunista não teve bases instaladas nessas nações na segunda metade do século XX. Trata-se de Paraguai, Equador, das duas Guianas e do Suriname. A StB estava interessada pelo Paraguai, mas durante os anos 1955-1989 o país foi governado pelo ditador Alfredo Stroessner, um conhecido político anticomunista, o que tornava praticamente impossível qualquer tipo de atividade de serviços de inteligência comunistas naquele território. Sabemos que a StB, para poder adquirir qualquer informação de Asunción usava dos serviços de seus agentes ou colaboradores que eram cidadãos de outros países da América Latina. Mas o obstáculo decisivo para a organização de uma rezidentura no Paraguai foi, logicamente, a ausência de relações diplomáticas com o país.
Quanto ao Equador, a Tchecoslováquia, é verdade, possuía relações diplomáticas estabelecidas, mas essas não eram imunes às patentes tensões e conflitos existentes à época. Lembramos que essas relações estiveram rompidas nos anos de 1954 e 1962. Somente em 1969 houve uma melhora significativa das políticas de reciprocidade, e essa se deu no período quando o serviço de inteligência tchecoslovaco encontrava-se severamente enfraquecido por consequência dos acontecimentos do ano de 68 (Primavera de Praga). Isso significa que a inteligência não teve a mais fundamental e confortável ferramenta que possuía nos demais países da América do Sul: não dispunha de um local permanente e seguro onde pudesse organizar a sua rezidentura, ou seja, uma embaixada ou uma representação diplomática ou comercial no território do Equador. Estamos nos referindo principalmente aos anos 50 e 60. Por isso, em nosso mapa, o Equador é um ponto em branco. Isso não significa que a inteligência da Tchecoslováquia comunista, em geral, não tinha interesses por este país. Nós não pesquisamos sobre esta questão, mas, por acaso, nos deparamos com informações – ou uma boa história – que confirmam as afirmações anteriores sobre o interesse da inteligência, também, pelo Equador.
No Brasil, a rezidentura da StB, apesar das dificuldades resultantes da mudança de regime em 1964, seguia em condições de realizar suas atividades operacionais ofensivas, embora com menor extensão do que antes do golpe militar. Os funcionários da rezidentura, ou seja, pessoas que formalmente eram diplomatas mas de fato oficiais da inteligência, em razão de seus trabalhos oficiais, participavam da vida diplomática que se desenrolava no Rio de Janeiro ou na nova capital Brasília. Durante um dos coquetéis na embaixada soviética no Rio de Janeiro, no dia 15 de maio de 1967, o diplomata tchecoslovaco que assinava os seus relatórios para a central da StB em Praga com o codinome de “Homola” conheceu, além do embaixador do Equador, a primeira-secretária da embaixada equatoriana, que durante uma conversa demonstrou interesse em um novo encontro. Ela queria discutir algumas questões relacionadas com contatos culturais de ambos países. A senhora primeira-secretária era uma conhecida poetisa. Para ela, os temas culturais eram importantes não apenas por sua função na embaixada. Na imprensa brasileira da época é possível encontrar breves notas, como por exemplo esta apresentada abaixo, em que a diplomata equatoriana pronuncia-se publicamente para promover, entre outros, os poetas de seu país.
Conferência
Promovida pela Academia Carioca de Letras, a escritora e diplomata Maria Eugênia Pulg Lince, primeira-secretária da Embaixada do Equador, realiza hoje, dia 5, às 17h30mi,. no auditório da Escola Nacional de Belas-Artes (Av. Rio Branco 199), uma conferência sobre o tema: “Três poetas equatorianos de diferentes escolas”. A conferência será apresentada pelo acadêmico Othon Costa, presidente da Academia. (Correio da Manha 5.9.1967)
Nesta época “Homola” era o secretário Cultural da Embaixada tcheco-eslovaca no Brasil[1]. Seu nome verdadeiro era Václav Hubička e sua estadia foi documentada pela imprensa da época. Por exemplo, no Jornal do Brasil de 22.10.1966, em seu caderno cultural, encontramos um texto de autoria de Renzo Massarani[2], em que é mencionado o lançamento dos novos discos LP da empresa tchecoslovaca Supraphon, apresentados no Rio de Janeiro justamente por Hubička. Nosso agente, aproveitando-se da oportunidade do posto que ocupava, começou a se encontrar com a poetisa-diplomata equatoriana. Convidou-a para ir a um restaurante e ela, por sua vez, o recebia em seu apartamento.
No relatório de trabalho do camarada Homola, elaborado em julho de 1967 na central da inteligência em Praga, entre outros, é mencionada a poetisa equatoriana. Uma das tarefas do oficial era a de conhecer diplomatas de outros países. O novo contato com a equatoriana foi avaliado como “interessante para o serviço de inteligência” e de valor para continuar a ser “trabalhado”. Este documento procede da pasta de correspondência operacional[3] entre a central e a rezidentura no Rio de Janeiro.
Quanto aos relatórios de “Homola” sobre Maria Eugenia Puig (era assim que a poetisa e diplomata se chamava), foram eles reunidos em uma pasta de objetos de interesse chamada Informações sobre pessoas da vida política e econômica[4]. Mas vamos ao “trabalho” do camarada Homola sobre a pessoa de Maria Eugenia Puig Lince. A poetisa equatoriana, que recebeu o codinome de “Celina”[5] tinha na época 48 anos; o diplomata tcheco, seu novo amigo era seis anos mais novo do que ela. Esta informação é importante, pois como veremos abaixo, surgiu uma relação entre o tcheco e a equatoriana, que para Celina provavelmente era muito especial. Também é interessante o fato de que, no mais extenso dos primeiros documentos onde é mencionado o caso “Celina”, a sua data de nascimento foi estimada entre os anos 1925-1927, enquanto que na realidade o seu ano de nascimento era 1919. Devemos lembrar que nessa época não havia Internet e informações universalmente disponíveis. Não era fácil saber mais do que dada pessoa dizia sobre si mesma, e a aquisição de informações deveria ser feita com muito tato para que ela não começasse a ficar desconfiada. Vejamos então que a data de nascimento da diplomata do país estrangeiro primeiramente foi estimada em base a sua aparência e o oficial da inteligência achou que ela era provavelmente mais jovem do que ele. Já durante o primeiro encontro, na embaixada soviética, “Homola” ficou sabendo que a sua nova conhecida fazia parte da elite política em seu país. Sendo uma pessoa do serviço de inteligência, a informação que o deve ter deixado literalmente em choque foi a de que o tio da poetisa era o então presidente da República do Equador, Otto Arosemena[6] em pessoa. Assim que essa fantástica notícia chegou à central da inteligência em Praga, imediatamente foi decidido abrir uma pasta de “trabalho” sobre essa bem aparentada poetisa, para a qual foi dado imediatamente um codinome.
Já durante o segundo encontro, “Homola” fez um pedido á nova conhecida, se ela não poderia adquirir para ele informações sobre os planos da Organização dos Estados Americanos, a OEA, justificando para isso o isolamento de diplomatas dos países socialistas. Maria Eugenia prometeu que faria um esforço para adquirir para ele os materiais, acrescentando que ela mesma era a favor da reatamento das relações diplomáticas do Equador com países socialistas. No dia 14 de agosto de 1967, durante um encontro no restaurante São Conrado, ela entregou ao agente informações datilografadas sobre as opiniões de diplomatas da América Latina no Rio de Janeiro sobre a próxima conferência da OEA.
Os encontros com Homola ocorriam com muita frequência: mais ou menos uma vez por semana e, com base a isso, o funcionário concluiu que “Celina” estava interessada no contato, que se transformava em uma amizade.
Para os conhecedores da obra de Maria Eugenia Puig, a descrição de suas características elaborada por Homola, que aqui citamos por inteiro, pode ser interessante: “P. [Puig] é uma mulher de aproximadamente quarenta anos, de aparência um pouco excêntrica (maquiagem exagerada para tentar manter uma aparência jovem); típica representante de uma personalidade latina. Ela própria considera que faz parte dos literatos, escreve versos (sonetos), publica a revista cultural “Oasis” e quanto a esta área, ocupa uma posição relativamente alta no Equador. (…) É bastante inteligente, observadora, tem uma memória muito boa, mas um péssimo conhecimento político. É religiosa: adora o Menino Jesus de Praga. No que diz respeito à sua visão politica, é uma pacifista confessa. A busca dos países amantes da paz pela manutenção da paz mundial e a luta contra as tendências belicistas é, por enquanto, a nossa plataforma política comum durante as discussões em nossos encontros. Declara que é uma democrata e que respeita o direito de cada país quanto ao próprio regime. Sente-se solitária na função de primeira-secretária da embaixada do Equador no Rio de Janeiro. Possui contatos relativamente abundantes com personalidades importantes da vida cultural e política no Rio de Janeiro e com alguns membros do corpo diplomático local. Conhece funcionários de embaixadas de países da América Latina, EUA, Holanda, Espanha e alguns outros países ocidentais, também conhece alguns diplomatas de países socialistas (soviético, húngaro e embaixada romena). Possui contatos com as direções de instituições culturais (Academia de Letras) e dos principais jornais do Rio.”
Homola vê Puig como um contato graças ao qual será possível adquirir importantes informações sobre a Organização dos Estados Americanos (OEA) e, também graças aos seus bons contatos na área diplomática, será possível esperar que através da sua ajuda o oficial aumente significativamente a sua base de contatos, ou seja, diretamente falando: ela o apresentará para toda uma gama de personalidades interessantes e importantes. É claro que as suas conexões familiares não deixavam de ser importantes: levando em conta a possibilidade de reatamento das relações diplomáticas com o Equador, o espião, em seu relatório, chama a atenção para a possibilidade de aproveitamento de suas conexões familiares “para os nossos objetivos”. Referia-se a um acesso à Presidência da República.
O oficial da StB sugeria claramente que Celina deveria continuar a ser “trabalhada”, que é necessário aprofundar o sentimento de amizade; estava convencido de que, com o passar do tempo, seria capaz de transformar a relação em contato secreto: ou seja, conseguiria convencer a diplomata-poetisa a um tipo de colaboração que teria um caráter secreto como agente.
Em setembro e outubro de1967, ocorreram 4 encontros; desta vez não foi possível extrair dela nenhuma informação que fosse interessante para o serviço de inteligência. Enquanto isso Puig tinha outras preocupações: seus filhos e sua mãe haviam chegado ao Rio. Esse período foi aparentemente ineficaz, Homola aproveitou para aprofundar a relação com Maria Eugenia. Ela revelou ao diplomata tchecoslovaco que tinha problemas financeiros e por isso pensava, com cada vez mais frequência, em voltar para o seu país. Ele registrou um tipo de despedida oficial da poetisa com o Rio, foi a uma conferência no Pen Club (dia 10 de outubro), na qual, diante de um escasso publico falou sobre a poesia equatoriana. Também informou sobre esta conferência o “Jornal do Brasil” (10.10.1967, ver ilustração a esquerda), ou seja, novamente temos a confirmação de que os dados existentes na pasta de objetos da StB dedicada a Maria Eugenia Puig são verdadeiros.
No dia da conferência, Maria Eugenia já estava decidida em voltar ao seu país. Assim como contou ao seu amigo tchecoslovaco, não pretendia voltar ao seu ex-marido, mas desejava trabalhar no ministério das relações exteriores, reorganizar as suas questões pessoais e depois viajar novamente para algum dos postos diplomáticos que, por causa de sua família, não fosse muito distante do Equador. Puig garantiu a Homola que a sua partida não significaria o fim da amizade deles. No dia 20 de outubro de 1967, juntamente com a mãe, voou para o Equador.
O contato do oficial da StB com a poetisa durou cinco meses: de maio até outubro. Homola afirmou, que para ele, ela foi praticamente um contato secreto, que na sua opinião, oferecia perspectivas. Somente a falta de tempo fez com que não houvesse um melhor aproveitamento de inteligência deste interessante contato. Homola, apontando para a sua situação pessoal (mulher solitária), não excluía a possibilidade de que conseguisse adquiri-la como uma colaboradora secreta e consciente. Ou seja, caso dispusesse de mais tempo, poderia recrutá-la.
Propôs para que o “trabalho” não fosse interrompido e inclusive colocou-se de prontidão para viajar ao Equador. Ao prestar contas dos gastos para a manutenção deste contato, anotou que a presenteou com uma taça de cristal, uma figura do Menino Jesus e um colar.
A central em Praga decidiu interromper o assunto, apesar de Homola ter frisado em seus relatórios que Celina, ao contrário dos latinos em geral, levava bem a serio a questão de cumprir promessas e aparecer nos encontros. Mas, não excluía a possibilidade de que o esforço dela pudesse resultar somente da sua relação que mantinham, pois ela o tinha alguém importante. Homola percebeu então que ela desejava manter a sua relação com ele (apesar de saber que ele era casado) mas, ao mesmo tempo apresentou em seu relatório uma avaliação sobre ela informando que não se deve concluir que era uma mulher desesperada que aceita fazer uma amizade com qualquer um. No que diz respeito ao seu aproveitamento para o serviço de inteligência, ainda chamou a atenção para mais uma característica, que relativamente a eliminava como possível colaborador secreto da StB. Celina era “tagarela”, falava com disposição sobre seus problemas pessoais e emocionais. “É muito emocional, encanta-se facilmente, torna-se melancólica com facilidade. Inclusive até chora. Durante as conversas, usa com disposição “grandes” palavras, metáforas poéticas, exageros.” Homola aconselhou para que o seu destino fosse observado e caso houvesse oportunidade, o contato com ela fosse restaurado, o que foi aceito por Praga que congelou o seu caso.
Na pasta “Celina” a nota seguinte é datada de 18 de julho de 1968. Nela, Homola informa que, após voltar de licença à embaixada, uma carta de Celina de maio de 68 esperava por ele. Chamou-lhe a atenção o fato de que o envelope possuía marcas de haver sido selado uma segunda vez, por isso o enviou (juntamente com os restantes) para uma análise em Praga. No que diz respeito ao conteúdo de suas cartas, com o passar do tempo chegaram outras para o amigo tchecoslovaco, e este as caracterizou como sendo emotivas. Nelas, Maria Eugenia escrevia que em Quito sentia-se insatisfeita e estava tentando partir para algum posto diplomático.
A central em Praga ficou preocupada com o fato de que a correspondência de Celina provavelmente vinha sendo controlada no Equador; ordenou ao seu funcionário no Rio para que interrompesse gradativamente o contato por correspondência com ela. Gradativamente para que não surgissem suspeitas da contra inteligência equatoriana e para não deixar Celina ofendida, permitindo assim a possibilidade de eventual restabelecimento de contato caso houvesse oportunidade.
A análise dos técnicos do departamento VI (técnico) da central da StB em Praga, demonstrou que os envelopes das cartas de Celina para Homola foram novamente colados, mas não foi capaz de determinar quem ou quando o fez.
Em dezembro de 1968, Homola relatou a Praga que Celina continuava escrevendo para ele e apesar da mudança de poder no Equador, ela possuía boas relações tanto com o novo presidente Velasco Ibarra[7] assim como com a presidência do Congresso. A central ainda decidiu “conservar” este contato; Celina, é verdade, escreveu em uma carta para Homola que teria novamente a possibilidade de viajar para algum posto diplomático (citou Brasil, Venezuela e Uruguai), mas isso ainda não era garantido. A central, que controlava a correspondência entre Homola e Celina e ditava as teses das suas respostas, desta vez ordenou para que mantivesse uma relação menos profunda. Homola enviava religiosamente suas cartas para Celina e cópias para a central.
No inicio de outubro de 1970, a inteligência decidiu que o caso seria encerrado; nesta decisão podemos ler sobre a tentativa de contato com Celina na Venezuela. Lá, pois, Maria Eugenia começou a trabalhar na embaixada equatoriana em Caracas e a StB ordenou a um de seus funcionários para que entrasse em contato com o objetivo de prosseguir no “trabalho”. Entretanto, esta tarefa não foi confiada a Homola, mas sim ao oficial da StB de codinome Bakalář[8] que então trabalhava na Venezuela. O impulso para que fosse feita a tentativa de contato foi a notícia escrita por Celina em seu cartão de visitas para Homola, entregue a ele pelo diplomata tchecoslovaco J. Rutta[9], que por sua vez o recebeu de outro diplomata que então trabalhava em Caracas. A notícia foi escrita no dia 4 de março de 1970 e chegou até Homola no dia 16 de maio. O conteúdo desta era o seguinte: “Estou aqui para você como secretário [da embaixada] de cultura na Venezuela. Continuo pensando em você. Envio lembranças desde o prédio sede da legação de seu país. Sou grata ao seu bondoso compatriota que entregará esta carta. Escreva para mim na embaixada equatoriana. Depois escreverei para você. Saudações.”
Homola convenceu aos seus chefes de que valia a pena refazer o contato com ela, já que apesar da mudança de regime, ela adquiriu novamente uma importante função diplomática. Na sua nota de serviço, existe um fragmento sobre isso, onde entre linhas convence os chefes da seção americana de que é preciso enviar justamente a ele, para que realize a tarefa de refazer o contato. Não o faz diretamente. Observemos as palavras que usou ao escrever a nota de serviço:
…trata-se concretamente de uma mulher que está envelhecendo, com o casamento arruinado, com uma numerosa família que está se desestruturando, mas é uma mulher muito emotiva. Assim como as experiências do Rio de Janeiro demonstraram, falta para Celina um parceiro masculino e a amizade do mesmo, sendo que ela estaria pronta para oferecer muito com o objetivo de manter isso.
Esta avaliação demonstra claramente que contava que justamente ele seria novamente enviado ao estrangeiro. Não estamos em condições de afirmar se desejava novamente encontrar com ela ou estava mais interessado na atraente função, já que o trabalho em um posto diplomático para dois empregadores (Ministério das Relações Exteriores, a diplomacia, e Ministério do Interior, o serviço de inteligência) significaria simplesmente um salário dobrado e uma ótima oportunidade para melhorar a sua situação econômica. Sabemos que a sua estadia anterior no Brasil foi avaliada pela diretoria da seção americana da StB como negativa, por isso a tarefa de fazer contato com Celina foi confiada para Bakalář que trabalhava em Caracas. Na pasta de Celina existe um relatório feito por este oficial, onde descreve o andamento de seus contatos com ela. Chama a atenção principalmente que durante cada coquetel oficial, em qual ambos estiveram presentes, ela falava por todo com quem conversava que conhecia do Rio de Janeiro a Homola e “Suk” (ou seja, Rutta). Bakalář confirmou a opinião de Homola sobre ela, de que dentro da diplomacia equatoriana ela possuía provavelmente uma posição de destaque, mas a observação que faz é relativamente irônica: “sim, comporta-se frente ao embaixador de uma maneira familiar; ela mesma me disse que não frequenta a embaixada, mas dedica todo o seu tempo à atividade da sua obra literária. Nesta situação a pergunta que surge é se ela tem acesso a informações de importância para a inteligência, se tem condições de concentrar-se em outra coisa que não seja sua própria criação literária.” O oficial afirmou que não existe problema em aproximar-se dela, mas questiona se ela seria um tipo apropriado para figurante, já que na sua opinião não é possível “conduzi-la”, pois é “incontrolável”. O mais forte argumento contra o restabelecimento do “trabalho” sobre ela, o oficial concluiu na última frase de sua anotação:
…recordo que em algum momento o camarada Homola descreveu CELINA como sendo uma mulher excêntrica; por enquanto a minha primeira impressão é a de que ela é no mínimo louca.
E esse foi de fato o último registro na pasta da StB sobre Maria Eugenia Puig.
Esse caso nos demonstra que o trabalho do serviço de inteligência em dado país também podia estar relacionado com outra nação; do Brasil, a StB lançava os seus tentáculos sobre o Equador. Também podemos ver que um dos principais elementos do trabalho do espião era a relação pessoal; tentava criar uma relação mais profunda, uma amizade e, no caso de uma relação com uma mulher, talvez algo ainda mais forte. Um fator importante era o tempo (nesse caso a sua falta): Homola não conseguiu durante estes cinco meses no Rio de Janeiro aprofundar a relação com o figurante a tal ponto que pudesse passar às seguintes etapas de ligação e, por consequência, levar a seu recrutamento. Após este período, houve uma correspondência entre eles que tinha como objetivo manter o relacionamento. Isso foi possível e posteriormente quando a figurante encontrava-se no país, onde a StB possuía a sua rezidentura, foi possível iniciar a restabelecimento do contato “conservado”. Aqui novamente o fator humano falou mais alto: é possível perceber que não houve uma química entre Bakalař e Puig; segundo as palavras dele é possível notar que sentia uma clara aversão a ela. Podemos especular se caso Homola estivesse em seu lugar a coisa não seria diferente e, quem sabe, talvez Maria Eugenia mudasse a sua relação de amizade para com o trabalho e fosse capaz de fornecer informações valiosas para o serviço de inteligência. Não foi isso que aconteceu. Também porque Homola, como funcionário “não passou na prova” no Rio de Janeiro e por isso a central em praga não o enviou novamente para trabalho de campo; de qualquer maneira, pouco tempo após 1970 foi liberado da StB. Estas circunstâncias fizeram com que a poetisa equatoriana não tivesse noção de que o seu amigo era um espião e que ela poderia ter se tornado uma agente de um serviço de inteligência estrangeiro. De uma forma inconsciente ela passou perto deste risco, fornecendo no Rio informações para o diplomata tchecoslovaco, mas fez isso convicta de que estava lhe ajudando em seu trabalho oficial. Os presentes que ele lhe dava, aceitava não como uma prova de gratidão por entrega de informações, mas como mostra de simpatia pessoal.
Do ponto de vista da StB, Homola, durante o aprofundamento da relação com o figurante ultrapassou os limites, ou seja, exagerou. Estragou a relação com o figurante a tal ponto, que o figurante tornou-se inútil em uma situação onde outro oficial condutor deveria recebe-la. Em breve teremos a possibilidade de estudar a pasta pessoal de Homola; talvez as características deste oficial da StB revele algo sobre ele que nos permita compreender por que as coisas tomaram esse e não outro rumo, no que diz respeito ao “trabalho” sobre Celina.
Seja como for, parece que o Equador continuou sendo um ponto em branco no mapa de influências da StB na América do Sul.
Vladimír Petrilák
Anexos:
Nota sobre Renzo Massarani; foi um contato oficial da inteligência, ou seja, uma pessoa absolutamente inconsciente que se encontrava no campo de interesses do serviço de inteligência estrangeiro.
Artigo sobre o festival de música primavera de Praga, que foi avaliado pelo oficial da StB como bom.
Pagina 365 do Diário de ordens para oficiais de carreira do Departamento I do Ministério do Interior no ano de 1966, primeiro-tenente Hubička (foi escrito a caneta: Homola), funcionário da seção 1 [ou seja, americana] do serviço de inteligência, foi por ordem do dia 2 de fevereiro de 1966 enviado à reserva, o que significava que foi enviado para o trabalho no ministério das relações exteriores, para tornar-se um diplomata, o que foi adicionado a lápis junto ao seu sobrenome – ver abreviação MZV.
Pagina 289 do Diário de ordens do chefe do departamento I da StB pelo ano de 1966. Ordem n. 33, de 11 de maio de 1966, página 2, junto ao sobrenome Hubička foi escrito a lápis: “Homola, Rio de Janeiro, segundo-secretário da embaixada, agenda cultural”. O fato do Ministro do Interior, chefe da StB, enviar Hubička pelo Ministério das Relações Exteriores ao posto diplomático no Rio de Janeiro revela claramente o seu papel oculto de funcionário da inteligência; isso é uma confirmação de que o diplomata, na verdade, era um espião.
A página anterior (288) do Diário, demonstra claramente de que se tratava de uma ordem para um funcionário de carreira do Chefe do departamento I do Ministério do Interior (náčelníka 1. správy MV), ou seja, serviço de inteligência da StB.
Aqui, por sua vez, temos um documento anterior do departamento I do Ministério do Interior de 20 de abril de 1966, página 1 de um relatório de 6 páginas sobre o envio, preparação e informação sobre as tarefas ao camarada Homola do seu trabalho no Rio de Janeiro. Através do documento podemos saber detalhes: que o camarada Homola está sendo enviado como membro da rezidentura com a função de segundo-secretário da embaixada. O importante é que se preparou para esta missão desde 17 de janeiro de 1966 na 7. seção territorial do Ministério do Interior, onde ficou conhecendo a problemática brasileira e dominou os fundamentos de trabalho diplomático; neste período também participou de um curso de idiomas no MRE, em 15 de abril de 1966 fez o exame de língua portuguesa. Na parte seguinte deste documento esta determinada a tarefa de inteligência e o plano de trabalho na rezidentura.
Maria Eugenia Puig – relatório sobre novo contato do dia 7 de setembro de 1967; embaixo lê-se uma recomendação manuscrita: Favor abrir uma subpasta número 11778, codinome CELINA.
[1] “Homola”, chamava-se Václav Hubička, 1925-2009, nas biografias oficiais está frisada a sua atividade na diplomacia e no Comitê Olímpico Tchecoslovaco após 1970. Entretanto, seu trabalho no MRE resulta do fato de que foi um funcionário da polícia secreta, seção do serviço de inteligência no exterior e, como tal, cumpriu suas tarefas. Trabalhou no Brasil durante os anos 1966-1969, foi chamado de volta a Praga por causa dos fracos resultados do trabalho no serviço de inteligência. Em julho de 1972 foi liberado do trabalho da StB. Em 1978 Hubička foi registrado pela contra inteligência da StB como contato secreto (em tcheco důvěrník) com o codinome de “Tajemník” (em português “Secretario”, codinome aludindo à sua função como secretário-geral no Comitê olímpico, n. reg.14602, n. arquivo 805923) – mas para ser mais exato, primeiramente a sua pasta foi conduzida como “sob verificação”, ou seja a StB observava dada pessoa e posteriormente qualificava a mesma para candidato a colaboração secreta e em 1983 recebeu o status de contato secreto. Por decisão do Tribunal Constitucional tchecoslovaco de 1991, esta categoria não e considerada como uma colaboração consciente com a StB.
[2] Renzo Massarani, 1898-1975, compositor italiano e crítico musical com descendência judaica. Desde 1939 viveu no Brasil, onde em 1945 se naturalizou e posteriormente tornou-se membro da Academia Brasileira de Música. Publicou suas críticas nos jornais A Manhã e Jornal do Brasil. Em 1970 ele apareceu na lista de contatos oficiais no Brasil do agente tchecoslovaco da StB de codinome “Svatoň, que em um relatório o descreveu como crítico musical, jornalista. Informou que “neste ano visitou a Tchecoslováquia a convite do Ministério da Cultura, para participar da Primavera de Praga [conhecido festival de musica clássica – nota do autor. O dito texto encontra-se no Jornal do Brasil, pag. 2, caderno 2, de 30.7.1970 e chama-se A primavera de Praga] escreveu críticas muito boas. Pode ser aproveitado para a publicação de materiais sobre música. Bem util.” Mais sobre Massarani: https://it.wikipedia.org/wiki/Renzo_Massarani
[3] Número de registro 81040.
[4] Número de registro 11778.
[5] No idioma tcheco a palavra “celina” tem alguns significados: pode ser estepe coberta de grama, ou também um envelope de correio com selos ou carimbos especiais que têm grande valor para colecionadores.
[6] Otto Arosemena, 1925-1984, advogado e político equatoriano, foi Presidente da República do Equador nos anos 1966-68.
[7] José María Velasco Ibarra, 1893- 1979, advogado e político equatoriano. Foi presidente do Equador por cinco vezes: 1934-1935, 1944-1947, 1952-1956, 1960-1961 e 1968-1972.
[8] Nome real: Václav Bubeníček, oficial da StB
[9] Josef Rutta, 1921-2009, diplomata especializado na região da América Latina, colaborador secreto da StB por muitos anos, codinome Rytíř, Suk; sua pasta foi destruída.
Sei que o assunto é sério, mas uma coisa ficou em minha cabeça ao acabar de ler: essa história, se um pouco romantizada, daria um bom filme.